quinta-feira, 22 de março de 2012

Edição final





- “Sente-se e espere um pouco. Só estou terminando isso. É a minha edição final”, disse o editor.
- “Eu aguardo”, respondeu o escritor esperando para ser entrevistado.
- “Pronto”, disse finalmente o editor depois de alguns minutos. “Então você escreve?” – perguntou esticando os braços e estalando os dedos.
- “Escrevo sim.” – respondeu o escritor.
- “Sobre o que você escreve?”
- “Escrevo sobre tudo.”
- “Tudo? Não sei se gosto disso”.
- “Sobre um pouco de tudo”.
- “Melhor assim", avaliou o entrevistador. "Escreve sobre monstros?”
- “Escrevo”.
- “Sobre magia?”
- “Também escrevo sobre magia”.
- “Histórias melodramáticas?”
- “Ahã”.
- “Deixa eu ver... Romance policial?”
- “Escrevo sim. É o meu preferido”.
- “Voltemos aos monstros. Qual a sua habilidade com histórias de criaturas grotescas? Sabe que aqui elas são as mais vendidas, não sabe?”
- “Sei sim. Escrevo bem sobre monstros, apesar de não ter tanta experiência com eles”.
- “E com o que tem experiência”?
- “Gosto de algo mais bucólico”.
- “Bucólico? Onde eu estava com a cabeça quando te chamei para a entrevista? De caipira já basta o Zé Toco da gráfica. Não acerta uma aquele lá”.
- “Sou caipira mas estudei na cidade grande”.
- “Não importa, é caipira do mesmo jeito”, disse o editor esbaforido. “Mas bem, estou precisando de alguém com urgência. Terei que aceitar você mesmo.”
- “Terá que me aceitar?”
- “Sim. Não posso me dar o luxo de fechar a porta na sua cara, estamos com muito trabalho acumulado. Mas já vou avisando que pago pouco”.
- “Tudo bem”, consentiu o jovem escritor.

O editor estava sentado frente ao escritor. Apenas uma mesa os separava. Sobre a mesa estavam alguns livros empilhados, algumas folhas soltas e uma tesoura de ponta.

- “Tem algo a dizer”, perguntou o editor cruzando as mãos sobre a barriga. Era tão gordo que quase não cabia na cadeira”.
- “Sim. Só queria que soubesse que não me dou bem com editores”.
- “Nenhum escritor se dá bem com editores. Mas somos necessários”.
- “Não acho que sejam necessários. Por mim, todos os editores seriam extintos do mundo”.
- “Há! Vocês escritores são muito prepotentes. Primeiro os alemães acabam com Deus, depois você querendo o fim dos editores. Mas saiba que nem Deus e nem nós deixaremos de existir. Somos necessários. Somos nós que damos ordem às coisas. Imagine só a bagunça que seria...”
- “Foi apenas um parêntese”.
- “Não me venha mais com parênteses” - concluiu o editor batendo a mão sobre a mesa com violência e levantando a poeira acumulada dos séculos. “E quando pode começar?”, continuou.
- “Agora mesmo”.
- “Agora?” – surpreendeu-se o editor.
- “Sim. Já tenho uma ideia para uma história”.
- “E sobre o que é?”
- “Sobre um escritor que mata o seu editor”.
- “Não vejo graça nisso” – o entrevistador limpava o suor da testa esperando que algo fosse dito.
- “Na verdade, o editor não é bem um editor, é um monstro”, explicou o escritor.
- “Hum, agora está me parecendo melhor. Um escritor que mata um editor que não é um editor, e sim um monstro...”  
- “Isso mesmo. É uma história simples, o escritor só precisa de uma tesoura de ponta para matá-lo ”.
- “Interessante esse conto...”.
- “Não é um conto. Sairá amanhã no jornal. No caderno policial.”
- “Vou querer ler”.
- “Mas não vai poder”, concluiu o jovem escritor, já se projetando para frente do editor.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Subindo para baixo

Por que as expressões “subir para baixo” e "subir para cima” não estão erradas? A filologia explica isso. Ela é a ciência que estuda a língua. Não apenas a língua, mas a cultura da língua. E não somente a cultura da língua, mas a história da língua. Digamos que ela estude a história cultural da língua? Enfim, os filólogos são pessoas muito cultas. Isso digo, pois conheço um filólogo. Chama-se Eduardo Schwatz. Ele tem nome, cara, jeito e roupa de homem culto. Às vezes, de manhãzinha, pegamos o ônibus juntos e ele me conta um pouco sobre o seu trabalho. Diz que fica analisando cartas da idade média, obras antiquíssimas, e livros carcomidos pelos séculos. “As palavras de antigamente são diferentes das de hoje”, diz sempre o Eduardo nas idas ao trabalho.

Um dia, estávamos esperando o ônibus e ele me contou sobre a relação entre o português e o latim. Disse que a palavra “levar”, em latim, era ducere.

- “Conduzir, seduzir, abduzir são verbos que vieram dessa raiz latina. O verbo educar também. Seria uma união do prefixo ‘Ex’ com o verbo ‘ducere’, que deu a palavra ‘educare’ em italiano. Significa levar para fora, no sentido de preparar alguém para o mundo” – disse o rapaz de barbas ruivas entre gestos e reflexões. Ele era bem mais jovem do que eu, mas parecia ter a sabedoria de Moisés.

- “O ônibus está chegando”, eu disse, mas ele continuou falando sobre as relações entre as palavras.

- “você não vai subir”, perguntei quando o ônibus chegou.

- “Tá aí. Subir... Subir é a palavra mais complicada para os filólogos”, disse Eduardo.

- “Não brinca, Parece tão simples” – eu não sabia o que dizer, uma porque não sabia nada de latim, outra porque o motorista estava esperando o embarque do Moisés. Então ele subiu, entrou catraca adentro e me chamou para ficar ao seu lado, na última poltrona do ônibus.

- “Estava falando sobre a palavra subir...”, continuou Eduardo e depois seguiu com o raciocínio, “ainda não se sabe ao certo sobre a origem da palavra subir. Existem três teorias diferentes...”.

Tenho que confessar que eu me senti inteligente só de ouvir Eduardo falar sobre as teorias acerca da palavra “subir”. Vou tentar explicar agora o que eu ouvi naquele dia. Perdoem-me a falta de jeito para a coisa, mas não sou filólogo. Sou apenas um usineiro especializado em rosca sem fim.

Teoria 1: na época dos romanos, a palavra subir tinha o sentido inverso do que tem hoje. Significava ir para baixo. Fica óbvio quando se divide “sub” e “ir”. “Sub” significa baixo e “ir” significa ir, como se sabe. É que, no ritual de enterro, os romanos jogavam os mortos em uma vala grande e achavam que, enquanto os corpos desciam, as almas subiam, sendo carregadas por corvos. Aos poucos, a palavra foi perdendo o significado de “ir para baixo” e passou a ser usada apenas como “ir para cima”. Acho que a igreja tem alguma interferência aí.

Teoria 2: Esse argumento está relacionado à história da civilização fenícia. Na época, os fenícios eram os reis dos mares e dominavam as rotas comerciais no mediterrâneo. Criaram um sistema complexo de cartografia para que pudessem se locomover com precisão. Para eles, subir significava “ir para o sul”, ou “ir para baixo”- os fenícios tinham apenas uma palavra para designar baixo e sul. O negócio é que o norte fenício era o sul dos romanos. Depois que os romanos dominaram a Fenícia, eles se apoderaram do seu sistema de navegação. Na mão dos romanos, as cartas náuticas fenícias continuaram as mesmas, mas subir passou a designar o movimento para o norte, ou seja, para cima.

Teoria 3: Essa é a mais difícil de explicar. Há provas de que a palavra tenha sido criada pelo artista holandês Maurits Cornelis Escher, já no início do século 20. Na concepção de Escher, subir não significava nem “ir para baixo”, nem “ir para cima”. Para ele, subir era um conceito artístico e matemático que designava o ato de “ir mas não ir”, era apenas a ilusão de ir. Por isso usava o prefixo “sub” para definir a profundidade do termo. Nas obras do artista é normal encontrar uma queda d’água que parece descer mas não desce, uma escada que parece subir, mas não sobe, e uma rampa por onde não se desce e nem se sobe. Com certeza, uma pessoa que veja o quadro “Subindo e Descendo” de Escher entenderá bem essa teoria.

Com o Eduardo Schwatz, aprendi muita coisa. Hoje, sei que a expressão “subir para baixo" não está errada, assim como "subir para cima" não é redundante. É tudo uma questão de teoria.